segunda-feira, 7 de julho de 2008

Esse ciclone de silêncio

Minha sombra conhece cada desvão dessa casa. O arranjo das paredes, das escadas, das árvores. Por aqui passaram as jóias da infância, meu pai, meus amigos perdidos para sempre. Nesses cômodos sopra o dragão adormecido dentro do peito. Pássaros, terra, plantas, minha sombra pode identificar todo itinerário das pessoas que passaram suas vidas neste demônio de garrafa. Mama em algum cantinho cozinhando, limpando, inventando o que fazer como se fosse uma tela pintada todos os dias pelo mesmo pintor. Vítima de tantos encontros, tantas dores esquecidas, cozinhando ou cosendo, dando asas ao seu irrefletido sonho de menina. O abismo dessa casa, ciclone de silêncio nos gestos banais, o mesmo espaço em outro tempo, a mesma arquitetura diante os mesmos olhos, o mesmo lugar, a mesma sombra velada, outras horas surgindo, o tempo devorando a linhagem em seu vórtice, o relógio solar a dissecar as imagens dos olhos; o mesmo lugar: cadeiras, paredes brancas e sombras, outras pegadas no fundo negro da história.
De "O espelho cotidiano" de Danilo Bueno
Fotografia: RC

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